Termina conflito sobre abuso de direito de ação quando ocorre invasão de direito alheio
15/02/2021
Recurso Extraordinário nº 1.264.444/GO
O trânsito em julgado do Recurso Extraordinário nº 1.264.444/GO no STF pôs fim a um conflito iniciado em 2005, quando deferiu-se liminar requerida em habeas corpus, posteriormente recebido como mandado de segurança, sustando tratamento autorizado pelo Judiciário para interrupção de gravidez de feto com diagnóstico de inviabilidade de vida extrauterina.
Dessa forma, estabilizou-se o entendimento do STJ no Recurso Especial nº 1.467.888/GO, interposto simultaneamente ao apelo extremo, de que o direito de ação não é absoluto, configurando abuso, a invasão em direito alheio, bem como acerca da extensão do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 54 a outros casos de malformação fetal.
A situação fática envolveu a descoberta por um casal, em setembro de 2005, que o feto gestado possuía a Síndrome de Body Stalk (grupo de malformações de face, cranianas, cardíacas, diafragmáticas, dos membros inferiores e cintura pélvica, em que o cordão umbilical é curto ou ausente¹), seguindo-se o requerimento e a autorização judicial para interrupção da gravidez. Diante disso, um padre impetrou habeas corpus visando a suspensão de procedimento de antecipação de parto, com liminar deferida dois dias após iniciado o tratamento para indução ao parto. Na semana seguinte, a criança faleceu 1 hora e 40 minutos após o parto.
Os eventos processuais dizem respeito, em síntese, ao ajuizamento de ação de compensação por danos morais baseada na responsabilidade processual objetiva e no uso abusivo do direito de ação. A sentença de improcedência não enxergou na impetração de habeas corpus em favor de nascituro abuso de direito. O acórdão recorrido negou provimento ao agravo interno, entendendo não estar configurado o abuso do direito de ação, pela ausência de previsão do caso como causa de excludente de ilicitude, no Código Penal ou na jurisprudência, bem como inexistência de conduta contrária ao ordenamento jurídico, afastando, por consequência, a responsabilidade civil.
No Recurso Especial, argumentou-se a configuração de abuso do direito de ação, em decorrência de existir conduta pela qual tentou-se impor um posicionamento religioso a outrem e má-fé consistente na omissão no habeas corpus de que havia inviabilidade de vida extrauterina. Além disso, sustentou-se a aplicabilidade do precedente do STF na ADPF 54 sobre feto anencéfalo e a incorreta aplicação do artigo 2º do Código Civil, acerca dos direitos do nascituro, vez que a síndrome de Body Stalk inviabiliza a vida após o nascimento.
Dessa forma, no julgamento, em outubro de 2016, desse Recurso Especial, a controvérsia foi delimitada em saber “se o manejo de habeas corpus […] com o fito de impedir a interrupção da gestação […], que tinha sido judicialmente deferida, caracteriza-se como abuso do direito de ação e/ou ação passível de gerar responsabilidade civil […], pelo manejo indevido da tutela de urgência”.
O voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi apoiou-se em dois fundamentos principais, a extensão do entendimento da ADPF 54 a outros casos de malformação fetal que inviabilizam a vida extrauterina, e a possibilidade de responsabilização pelo exercício do direito de ação, frente à vulneração da intimidade, vida privada e honra.
No primeiro aspecto, entendeu-se que a decisão do STF na ADPF 54 “espraiou seus efeitos de forma intertemporal”, de maneira que na síndrome de Body Stalk, assim como na anencefalia, “o peso específico do direito a uma futura não-vida, não pode preponderar sobre o direito da mulher à liberdade, intimidade e autodeterminação”, tendo em vista que nas circunstâncias do caso concreto caberia apenas a mulher “dizer […] se deveria ou não interromper a gestação”, “sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferência de terceiros”.
Frise-se que na decisão judicial, explicitou-se que a existência de danos indenizáveis decorre também do fato de que a atuação da parte recorrida foi determinante para que fosse sustada o tratamento de interrupção da gestação, avalizado por médicos e pelo Poder Judiciário. Estando, pois, configurado o abuso do direito de ação, visto que no seu exercício vulnerou-se “o direito à liberdade, à intimidade e a disposição do próprio corpo por parte da gestante”.
Nesse sentido, a Ministra Relatora enfatizou que a “busca por um direito, em tese, legítimo, que, no entanto, faz perecer no caminho, direito de outrem, ou mesmo uma toldada percepção do próprio direito, que impele alguém a avançar sobre direito alheio, são considerados abuso de direito, porque o exercício regular do direito, não pode se subverter, ele mesmo, em uma transgressão à lei, na modalidade abuso do direito, desvirtuando um interesse aparentemente legítimo, pelo excesso”.
No voto, se esclareceu, igualmente, que “a busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência traz, para àquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos que porventura a concessão do pleito venha a produzir, mormente quando ocorre hipótese de abuso de direito”, caracterizada, na situação fática, por causa da imposição de conceitos particulares a terceiros, retirando de outrem “a mesma liberdade de ação que vigorosamente defende para si”.
Concluiu-se, dessa maneira, que o manejo do habeas corpus com pedido liminar concretizou violação da intimidade e vida privada do casal, tentando impor uma posição particular quanto à interrupção da gestação; agressão a honra “ao denominar a atitude que tomaram, sob os auspícios do Estado, de assassinato”; agir temerário, impondo sofrimento inócuo, vez que os prognósticos de inviabilidade de vida extrauterina se confirmaram.
Acrescente-se, por fim, que em junho de 2020, decidiu-se no Recurso Extraordinário nº 1.264.444/GO, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, que o apelo extremo estava prejudicado por perda superveniente de objeto, em virtude de o Recurso Especial ter sido provido pelo STJ, fixando uma compensação de R$ 60 mil, a título de danos morais, e honorários sucumbenciais em 10% sobre o valor da condenação. Assim, em agosto de 2020, ocorreu o trânsito em julgado, encerrando o conflito e possibilitando o início do cumprimento de sentença.
Por: Wilson Sales Belchior
¹ MATOS, Ana Paula Pinho et. al. Avaliação do abdome fetal por ressonância magnética. Parte 2: malformações da parede abdominal e tumores. Radiologia Brasileira, São Paulo, v. 51, n. 3, p. 187-192, 2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-39842018000…. Acesso em: 20 out. 2020.