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Projeto de Lei 1.179

12/02/2021

Como tempos inusitados requerem medidas atípicas

COVID-19, Lockdown e a Beira do Colapso Econômico
São de diversas ordens as preocupações que assolam, atualmente, grande parte da sociedade não só brasileira, mas também mundial durante a pandemia do Coronavírus. A economia brasileira, em especial, que se pensava finalmente estar saindo de um período deveras castigado, vai novamente atravessar um momento de enormes incertezas e, mais grave, sem perspectivas de melhoras a curto prazo.

É que os reflexos da crise sanitária da Covid-19 serão extremamente dolorosos notadamente sob o ponto de vista econômico e financeiro e mais ainda num país com reduzida capacidade de investimento e no qual a grande parte da população não dispõe muitas vezes do “pão de cada dia”.

Não é para menos, a adoção das penosas medidas de lockdown[1] mundo afora, embora não desejadas, mas sim porque se mostram verdadeiramente necessárias, dadas as inúmeras incertezas médico-científicas geradas pelo Coronavírus, compromete em alto grau a relações comerciais em todos os níveis, levando empresas à bancarrota, com demissões em massa, e ao inchaço do número de desempregados.

Não é, portanto, novidade que o regime de quarentena implantado em praticamente todos os Estados do país, com fechamento de shoppings centers, comércios e serviços em geral, impedimento de exercício de atividades individuais (autônomos), isolamento social, tem gerado um descompasso em cadeia que põe em sério risco a própria estabilidade econômica brasileira.

Felizmente, tais medidas, adotadas em praticamente todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal), não estão sendo implementadas sem uma contrapartida do setor público, mesmo porque não haveria como se manter corrente pelo Poder Público as obrigações financeiras (v.g., trabalhistas, previdenciárias, tributárias) e mesmo as empresariais com o setor privado em geral (e.g., contratos com fornecedores e clientes), sob pena de colapso não apenas do pequeno e médio empresário, mas também dos grandes empreendedores do país.

Remédios Legais contra a Crise: a opção brasileira e as medidas adotadas na Alemanha, França e EUA
Diante desses fatos, é que se tem acompanhado, diariamente, uma série de medidas no âmbito legislativo que têm sido adotadas pelo Governo Federal, em conjunto com o Congresso Nacional, com o intuito de minimizar os impactos da crise do COVID-19.

A mais recente, que se encontra sob a condução do Senado Federal, é o PL 1.179/2020, do senador Antonio Anastasia, com perspectiva de que seja votado ainda esta semana no Congresso Nacional. Referido projeto de lei, num texto único, porém bem enxuto e direto, propõe-se a fixar normas de caráter emergencial e transitório e relacionadas ao direito privado em geral (v.g., direito do consumidor, direito civil, direito empresarial, direito concorrencial, direito de família e sucessões e lei do inquilinato)

Nesse aspecto, inspirou-se claramente nas regras também transitórias do direito alemão, que lá foram batizadas “Ein Schutzschild für Beschäftigte und Unternehmen: Maßnahmenpaket zur Abfederung der Auswirkungen des Corona-Virus”[2] [3], isto é, um pacote de medidas legais (com mudanças em regras de direito civil, empresarial, falimentar e processual penal) que busca proteger as empresas e trabalhadores da crise do Corona Vírus e que veio a ter força de lei no dia 27.03.2020. Não foi essa, todavia, a opção tomada, pelos menos até o momento, e especialmente no que diz respeito à seculares regras de direito privado, por outros países como a França e os Estados Unidos da América, os quais tem forte tradição de respeito aos contratos e preservação da autonomia das partes.

Sob o ponto de vista francês, o governo local, após a promulgação da Lei 2020-290, de 23 de março de 2020, tem se limitado a emitir Ordonnances, como as de n.º 2020-304[4] e 2020-306[5], disciplinando regras de direito processual e judiciário apenas, tais como, (i) prevendo a prorrogação de prazos processuais, recursais, decadenciais, prescricionais; (ii) fixando procedimentos de audiências por meio de videoconferência, (iii) suspendendo os efeitos de astreintes e cláusulas penais etc., tudo isso durante o período de urgência sanitária, com lá se tem denominado.

Não houve, portanto, pelo Estado francês, revisão de regras de direito privado propriamente ditas, tanto que no âmbito do direito contratual, por exemplo, as discussões a respeito dos efeitos jurídicos da Covid-19 vão se balizando pelas regras já existentes de force majeure, consagrada no art. 1218 do Code.

No caso dos Estados Unidos, o tão anunciado pacote de US$ 2.2 trilhões de estímulo à economia veio consolidado no Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act[6] e é muito mais um conjunto de estímulos financeiros ao mercado (tais como a prorrogação de empréstimos hipotecários; a redefinição de regras de direito fiscal e bancário; a assistência financeira a companhias aéreas; o seguro-desemprego para trabalhadores dispensados durante a pandemia etc.) do que um realinhamento de regras entre particulares.

Essas considerações iniciais parecem necessárias para que possamos avançar no estudo dos temas trazidos no PL 1.179/2020 e para que a doutrina e jurisprudência fiquem absolutamente atentas ao caráter restritivo e emergencial das regras nele previstas, sob pena de o colapso ganhar contornos também jurídicos.

O Projeto de Lei 1.179/20: extremis malis extrema remedia
A expressão é atribuída a ninguém menos que ao pai da medicina, Hipócrates: se extrema é a doença, extremo deve ser o remédio. E é essa, com efeito, a tônica impressa ao PL 1.179/20. Num contexto mundial de estremecimento de nossas vidas ordinárias por algo que, na Common Law, é denominado de act of God, no sentido de que se trata de algo não criado por ser humano e fora de seu controle, é necessário agir preventivamente para, pelo menos, tentar ordenar o caos. O tal remédio excepcional, ou a medida desesperada (na forma inglesa, desperate times call for desperate measures), não significa todavia deixar as coisas ainda mais instáveis pela introdução de regras jurídicas inconsequentes ou que se afastem demasiadamente do ordenamento positivo.

Na verdade, toda a situação parece lembrar a conhecida frase de Tancredi, no Il Gattopardo: “se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”. Claro, a frase aqui está utilizada em um sentido diverso da que fora empregada no belíssimo romance de Tomasi di Lampedusa, porém o que se quer destacar é que, em casos como o presente, a estabilidade das relações sociais, pela própria magnitude e pelo caráter abrupto da mudança fenomênica que se experimenta, a qual torna impraticável a aplicação do modelo normativo existente, reivindica a urgente introdução, de maneira transitória em princípio, de ferramentas que até parecem contrárias às coisas existentes, mas cujo objetivo, ao fim e ao cabo, não é outro senão  o  de mantê-las.

Nesse sentido, o comentário de Otavio Luiz Rodrigues Junior, sabidamente um dos melhores especialistas do país na matéria, à Lei Faillot, que é, por sinal, expressamente mencionada na justificativa do Projeto dada a profunda similitude de contextos que une uma à outra: “introduzir um elemento de insegurança jurídica na cidadela aparentemente inviolável do pacta sunt servanda foi o único meio de que se pôde servir o Liberalismo para manter a estabilidade das relações jurídicas”.[7] É dentro de tal perspectiva que se deve pensar o Projeto. Sua virtude fundamental é, considerando a excepcionalidade do momento, buscar implementar instrumentos que assegurem  com justa medida e dentro de limites razoáveis uma momentânea mudança nas regras existentes a fim de preservar em definitivo o sentimento maior de segurança e constância que imantam o Direito  como um todo.

O Projeto de Lei 1.179/20: alguns comentários pontuais
Feitas as considerações acima destacadas, passa-se a uma rápida análise, muito mais informativa que com detalhes técnicos das principais alterações propostas pelo PL 1.179/20. Busca-se aqui realizar uma rápida compilação dos aspectos gerais e contratuais, deixando-se de lado pontos como o direito concorrencial e o de família e sucessões.

De partida, diga-se que o caráter provisório da medida, como informam os arts. 1º e 2º. O Projeto cuida inicialmente da prescrição e da decadência, estabelecendo o impedimento ou a suspensão da fluência dos respectivos prazos, conforme o caso, até 30/10/20 (art. 3º). A regra é de justiça porque, neste momento excepcional, aquele a quem não favoreça a contagem do prazo fatal o veria consumado contra si, embora estando fisicamente impedido de tomar alguma das medidas do art. 202 do CC para interrompe-lo.

Por outro lado, pela dimensão da crise não é mais o caso de sujeitar tal impedimento a uma comprovação individualizada. Ela deve, sim, salvaguardar a todos indistintamente. Por fim, é de se registrar que, como não poderia ser diferente, vale a mesma regra para a usucapião (art. 14).

Uma nítida preocupação do Projeto é flexibilizar as exigências no relativo às assembleias gerais e reuniões obrigatórias por determinação da legislação civil e empresarial para sociedades e pessoas jurídicas em geral, assim como em condomínio edifícios. Não se precisa enfatizar o quão correta é a preocupação, já que o isolamento social vem sendo considerado a medida primeira, dentre as recomendações sanitárias dadas pela OMS na batalha de contenção ao vírus. Isso, nada obstante irá afetar, por exemplo, uma sociedade anônima com marco para sua assembléia geral ordinária anual no meio da pandemia, ou de uma sociedade limitada que necessite alterar alguma disposição do contrato social para qual se requeria quórum qualificado.

A solução do Projeto é tão simples como eficiente: ficam igualmente tais prazos prorrogados até o dia 30/10/20. Isso, contudo, resolveria só parcialmente a vida das empresas, pois, como apontado acima, há situações onde é do interesse empresário um mudança interna e isso somente pode se fazer por deliberação societária em reunião ou assembléia. Para tanto, o Projeto, também seguindo o que já está sendo feito inclusive outros órgãos do Poder Público, permite a realização de tais atos de maneira virtual ou telepresencial, vale dizer, à distância ou de forma remota (art. 19).

Se a “necessidade é a mãe da invenção”, então aqui tem-se um efeito positivo do Coronavírus, pois parece que a pandemia acelerou a tomada de posição da burocracia estatal em favor do uso de  meios eletrônicos, o que até então era, em termos práticos, evitado, embora já fornecesse a legislação várias possibilidades para seu implemento. Aqui, acreditamos que não seria o caso nem de se falar em provisoriedade da medida, pois trata-se, em um mundo já tão virtual quanto físico, de algo destinado a tornar-se regra geral e não apenas pontual.

Na mesma linha, o Projeto dá poderes adicionais aos síndicos de condomínios edifícios pra restringir a utilização das áreas comuns a fim de evitar a contaminação do Coronavírus, bem como proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, se tais medidas se fizerem eventualmente necessárias para impedir sua propagação.

Importante aspecto do Projeto é o que se destina aos contratos. O Projeto andou muito bem ao estabelecer dois núcleos bem definidos para a aplicação da teoria da imprevisão: um, em relação aos contratos paritários, e o outro para situações negociais assimétricas, como a consumerista e a locatícia. No primeiro caso, não se consideram como imprevisíveis, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. Contrariamente, no segundo caso, sim, poderia ocorrer a revisão. Na verdade, e aqui não se pretende, descer ao estudo detalhado de questões doutrinárias, o que parece é que se está fazendo prevalecer a teoria da onerosidade excessiva, tanto que, para as relações simétricas, onde, portanto, as partes envolvidas podem suportar um pouco mais o peso da alea, o que se estipula é que tais situações, em essência imprevisíveis, não se considerariam como onerosas.

Uma curiosa regra se refere aos produtos ou serviços adquiridos por entrega domiciliar (delivery), aos quais a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor fica mitigada também até 30 de outubro de 2020. Trata-se do prazo para arrependimento (desistência) do contrato que é, como se sabe, de sete dias do recebimento da mercadoria ou do produto. Os motivos do Projeto para a inclusão da excepcionalidade são quase autoexplicativos.

O aumento excessivo na procura de tais serviços aliado ao fato de que tais empresas sequer tiveram tempo de se estruturar para  fazer frente a essa demanda, pode ocasionar uma série de defeitos na prestação do serviço. Porém, nesses tempos de pandemia, o delivery desenvolve um serviço de utilidade social indiscutível, parecendo ser temerário deixar que em relação a tais empresas o consumidor possa simplesmente exercer seu direito de resistência. Isso não quer dizer, contudo, que ao consumidor se assegure as compensações previstas nos arts. 18 e 20 do CDC, cuja aplicação, observe-se, não é infirmada nos termos do Projeto.

Por fim, seria o caso de falar dos arts. 9º e 10º do Projeto, que tratam do contrato de locação. Este falando da suspensão do pagamento dos aluguéis em decorrência de situações que importem alteração econômico-financeira do locatário. O artigo, imbuído de claro sentimento de solidariedade social, contudo, parece não ter atingido um grau de consenso politico que viabilize sua aprovação no Senado, já havendo notícia de que teria sido retirado do texto para fins de votação. De toda sorte, a manutenção do art. 9º, que veda a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo (art. 59 da Lei no 8.245/91) até 31 de dezembro de 2020, pelas mesmíssimas razões, constitui considerável alento para os milhões de brasileiros que sofrerão o baque econômico decorrentes da crise, sem, de todo modo, onerar demasiadamente os proprietários de bens imóveis.

Ponderações finais
Vivenciamos uma crise severa, a qual, diz Yuval Harari[8], é provavelmente a maior de nossa geração. Seria ingênuo, diante desse cenário, pretender que qualquer esforço legislativo para adequar o padrão normativo vigente à emergência que decorre da pandemia resultasse perfeito e imune a críticas. O Projeto de Lei 1.179/20 deve ser submetido a uma reflexão ampla por parte de juristas e demais profissionais que laboram no campo do Direito Privado a fim de que possa ser aperfeiçoado e atingir níveis de excelência ainda maiores do que os que já lhe são próprios. É de se parabenizar o esforço do senador Anastasia, que preside provisoriamente o Senado da República, bem como da comissão de juristas que lhe deu corpo, em especial o ministro Dias Toffoli (STF), o Ministro Antônio Carlos Ferreira (STJ) e o Conselheiro e Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. (CNMP/USP) pela iniciativa que, para além do sentimento de Justiça que traz consigo, implementa segurança jurídica e solidariedade social em tempos tão medonhos.

[1] Essas medidas de quarentena ou de isolamento, que têm sido aplicadas na grande maioria dos países, durante a atual pandemia, não se tratam de nenhuma novidade na história recente da humanidade. Basta lembrar que foi adotada, embora em proporções menores, quando das epidemias da peste negra e a peste bulbônica, ainda no século XIV, ou mesmo quando a epidemia de febre amarela desembarcou na Filadélfia durante o final do século XVIII, ou ainda quando a cólera chegou na Itália, no século XIX. Mais recentemente, vale lembrar o caso da gripe espanhola, que teve seu ápice após a 1ª Guerra Mundial, que infectou ¼ da população mundial da época, demandando a implantação de regimes de quarentena em diversos países.

[2] Em https://www.bundesfinanzministerium.de/Content/DE/Pressemitteilungen/Finanzpolitik/2020/03/2020-03-13-download-de.pdf?__blob=publicationFile&v=4.

[3] Essas alterações no direito alemão foram perfeitamente exploradas pelo Prof. Otávio Luis Rodrigues Jr. em recente artigo no Conjur: https://www.conjur.com.br/2020-mar-25/direito-comparado-alemanha-prepara-legislacao-controlar-efeitos-covid-19.

[4] Em https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000041755577&dateTexte=&categorieLien=id.

[5] Em https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000041755644&dateTexte=&categorieLien=id.

[6] Em https://www.congress.gov/bill/116th-congress/senate-bill/3548/text.

[7] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos. autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002. p. 33.

[8] Em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75.

 

Por: Tiago Asfor Rocha Lima é sócio de Rocha, Marinho E Sales Advogados e Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal

Fonte: Conjur

https://www.conjur.com.br/2020-abr-03/direito-civil-atual-pl-117920-tempos-requerem-medidas-atipicas

 

 

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